domingo, março 31, 2024

PÁSCOA 2024

 


 

       A passagem do cativeiro para a liberdade e da morte para a vida eterna tem hoje um sentido muito particular.

Somos diariamente acometidos de uma visão que não é nossa, dirigidos para fins que não desejamos, elevados a uma fraqueza crescente e aterradora com ares de força e de triunfo. Neste quadro, faz todo o sentido perguntar “para aonde nos dirigimos, para aonde nos estão a dirigir, ou quem ou o quê nos dirige?”.

Vivemos em um deserto onde, sem que haja um rosto definido, somos tentados com o poder sobre o mundo, se nos prostrarmos aos pés de um senhor cheio de atractivos e de promessas vãs que parecem fantasticamente verdadeiras. Ele diz-nos que tudo será nosso, ao que a avidez se rende na sua irracionalidade. E assim, sem que se dê conta, a liberdade mais uma vez fica adiada, a fé perdida, Deus lá muito longe. A ilusão do poder impõe-se, até se quebrar com a doença que surge quando menos se espera, a guerra no míssil aniquilador, ou a catástrofe que arrasou tudo. Depois, vem a mudança de paradigma. É a Páscoa que acontece e o deserto fica para trás, irremediavelmente.

Acorda-se para a realidade: tantos a amar o mundo, a lutar para que nada falte, ou muito pouco; há os que passam horas à cabeceira de um desconhecido que geme de dor; os que são amigos porque simplesmente amam um abraço fraterno, um olhar doce, uma palavra que se supera a ela própria. Ainda há os que expõem a própria vida movidos por uma fé que irrompe, provocadora e triunfal, nos campos da mentira e da manipulação no tal deserto das tentações. De facto, não se tinha pensado nisso, até precisar, é claro.

Mas existe. Existe o discurso que não é de ódio, e que não se consegue abafar, o desejo de paz e liberdade onde Deus está presente. É a voz daqueles que já festejam a Páscoa, os que estão em liberdade e vida eterna. E quem são eles? Nada de complicado. São os que vivem fraternalmente em um mundo faminto de Deus, são aqueles que têm em cada ser humano um irmão, os que pregam sem que ninguém os ouça em salas vazias ou cheias de gente que desejaria ouvir outra coisa. São os que pregam com a certeza de que Deus e Jesus, o Cristo, estão presentes.

São esses que, ao serviço de Deus e do Ressuscitado, tornam urgente repensar a Páscoa como a Grande Passagem, a saber, da fome para a saciedade, da guerra para a paz, da catástrofe para a reconstrução. A Páscoa como uma verdadeira primavera espiritual, uma mudança radical de paradigma.

Com tanto sofrimento, em um mundo que mata das mais diversas maneiras, que justifica os comportamentos mais ignóbeis, que chega ao ponto de afirmar e fazer crer que tem que ser mesmo assim, o que fazer? Como pensar Deus nesta cruel realidade? Mas também podemos inverter a questão: o que não fazer? Como não pensar Deus? Numa palavra, o que é que nos é possível?

Se Deus está em toda a parte, então também está dentro de nós. Então é chegada a altura de Deus passar por nós, residir, ficar lá. De certeza que, nessa altura, sem bezerros de oiro nem flagelações, os Mandamentos impor-se-ão na sua grandeza porque todos, absolutamente todos nas suas diferenças, viverão como filhos de um só Deus.

Precisamos de acreditar na humanidade. Não é acreditar nos bons porque são bons. Aí não é preciso. É acreditar que, como uma flor frágil, se se cultivar o bem de certeza que, pela lei dos afins, o mal não tem força.

Dito de outro modo: a vida é uma passagem, não mais do que de umas escassas dezenas de anos, para os que chegam lá. É do que dispomos para mostrar o que queremos, que mundo e que vida desejamos, que Deus há dentro de nós, o que ocultamos e o que se desoculta na nossa natureza. Há, no entanto, uma única certeza, transversal a todos nós, a de que há uma passagem inevitável que nos espera. Todos sabemos também que tudo o que é do foro material cá fica, pois o que levamos é o bem que fizemos ou o que deixámos de fazer, e não fazer o bem já é um mal. Compete-nos a nós, juntamente com o outro, sempre com o outro, fazer a mala.

Somos todos companheiros de viagem, e que viagem. Que esta Páscoa seja a passagem à consciência da inevitabilidade do encontro com o próximo, ou o reencontro num convívio que, de alguma forma, terá sido interrompido nos caminhos complexos da nossa existência. Sintamos a felicidade que é viajarmos todos juntos.

 

Margarida Azevedo

 

 

terça-feira, janeiro 09, 2024

ORAÇÃO - A POESIA DA FÉ

 



 

            Evitar-se-iam muitos problemas se, uma vez no dia, nos dedicássemos a um momento de oração. Não tem que ser longa, nem possuir uma linguagem elaborada. Deve ser um momento do coração, uma resposta a uma necessidade de paragem, um minuto de elevação do pensamento, ou um discurso onde as palavras tomam outros sentidos e se munem de outras forças. Esse diálogo com Deus traz a descoberta, isto é, tira a cobertura que nos entorpece os sentidos e nos deixa cair nas ilusões da imediatez.

            Quantas vezes não nos acontece sermos invadidos por uma necessidade de falar com alguém muito especial, um discurso em jeito de confissão, porém, com algo que não é bem de carne e osso; quantas vezes não somos invadidos por uma força impetuosa que nos projecta para uma conversa com o invisível?! De facto, o invisível pode ser um bom ouvinte, pode conter uma multidão de ouvidos, pode ser a voz de Deus a chamar-nos para o recolhimento.

            A oração é uma forma de cortar os elos do imediatismo, é um repouso na pressa do quotidiano, é um comprimido contra depressões, ansiedades, insónias. E a propósito de insónias, perdeu-se o hábito de orar antes de dormir, o que significa que não há um corte com as actividades diárias, com as preocupações e responsabilidades profissionais. Sem oração permite-se que tudo vá para a cama, menos o descanso, tão necessário e tão importante para o nosso equilíbrio.

            À noite, sabe bem elevar o pensamento a Deus (experimente), agradecer a saúde, a vida, a existência, o dia, enfim. E temos tanto para agradecer.

Faça da oração uma necessidade do espírito, um desejo apaziguador, um momento de santificação. A oração é uma limpeza da alma.

 

            Pai, que estais em todo o universo

            Envolvei-nos na Vossa simplicidade

            Nas palavras puras

            Nos pensamentos inaudíveis.

            Que o nosso querer seja uma fusão com o bem

            Com as coisas belas

Com a verdade singela

            Com o amor sem fim.

            Infinitizai, Senhor, o meu desejar a paz

            Relativizai o meu querer distorcido

            O elogio enganador

            O desejo da chefia perigosa.

            Eu quero o muito crer

            Quero uma fé despida de preconceito

            Quero a força do pensamento livre

            Quero a palavra pura.

            Quero precisar do que não preciso

            Viver o que não vivo

            Envolver-me no inesquecível

            Crescer, superar-me

Ir para além dos limites da minha natureza.

            Permiti, Senhor, que eu páre

            Que oiça a corrente dos rios e dos oceanos

            Que me funda com a Natureza

            E me divinize com ela.

            Dai-me as alturas do céu sem fim

            Os limites sem limites

            A graça no tormento

            O vigor na fraqueza.

            Eu quero ser forte como o elefante

            Doce como o cordeiro

            Leve como a pomba

            Cheio de vida como o universo.

            Perdoai-me, Senhor, de não ser, ainda, nada disso

            Da teima em permanecer cá no fundo

            Porém, a coragem não me falta

            Pois a fé diz-me que estais sempre presente.

 

 

            Margarida Azevedo